Entre os fluxos curriculares e o represamento de interesses formativos
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A coordenação dos cursos de Comunicação Social da Universidade do Sul de Santa Catarina tinha uma pequena sala no prédio mais movimentado do campus, contrariando a política institucional de concentrar a administração em um único lugar. No entorno ficavam os laboratórios e os estúdios, sempre muito procurados, e o estacionamento usado para o desembarque de estudantes de todos os cursos.
À época, estamos falando de 2005, o de Cinema estava sob o guarda-chuva da mesma coordenação de Jornalismo e de Publicidade e Propaganda. Alguns anos depois, motivado por novas diretrizes do Ministério da Educação, o corpo docente decidiu, acertadamente, pela carreira solo. Mas essa é outra conversa.
Eu estava numa das caminhadas reflexivas que costumava fazer pelos corredores da universidade quando fui abordado por um dos futuros cineastas, cuja indagação, curiosa, impactou pouco naquele momento.
— Eu gostaria de fazer a disciplina de anatomia. Consigo matrícula?
Minha reação imediata foi a de perguntar o que um estudante de Cinema queria ao se meter na formação de Medicina. Mesmo na área da saúde é difícil essa inserção. Para ajudá-lo, como coordenador de Comunicação, eu tinha de alegar algo consistente.
— É que pretendo me especializar em animação e conhecer anatomia é essencial para projetar personagens.
Resposta mais do que suficiente para tentar o pleito.
O problema era permitir um estudante estranho em uma disciplina sempre disputada dentro da própria Medicina. Fracassei, claro. Por mais plausível que fosse, não havia como abrir esse precedente para não infeccionar o tecido já fragilizado pelo excesso de intrusos que pertenciam a outras camadas do mesmo corpo curricular.
No universo das profissões liberais, qualquer perspectiva de ruptura nos muros que separam os de dentro e os de fora é vista como um sacrilégio. E a Medicina é a mais hermética dessas profissões.
De qualquer modo, a experiência me levou a discutir, primeiro no curso e depois na universidade, maneiras de flexibilizar os processos de formação. Eu não entendia porque se falava tanto em fluxo curricular se o que víamos na prática era o represamento de interesses, mesmo que específicos.
O estudo de anatomia não serve apenas para médicos. Mas não bastava inserir os conteúdos nas propostas curriculares de outras áreas afins. Era preciso promover o intercâmbio entre os estudantes de diferentes campos de formação em saúde no estudo da disciplina. Além disso, era necessário também criar critérios menos rígidos para permitir que interessados de áreas “não afins” pudessem pleitear uma vaga.
Debate difícil. Uma década depois daquele encontro casual que “interrompeu” minha caminhada reflexiva, houve uma reforma profunda nas diretrizes institucionais para a composição de currículos. Não avançaram tanto quanto poderiam, mas descobri que não pensava sozinho sobre as amplas possibilidades de formação que uma universidade pode construir, se quiser.
O problema é que, talvez, não queira. Aprendi isso da forma mais dura.
Luciano Bitencourt
luciano@entremeios.online